Tradução: Francisco Saiz
Revisão: José Moreira da Silva
Fonte: Sociedade da Terra Redonda
Origina: The “know-nothings”, the “know-alls”, and the “no-contests”
Esta foi uma palestra de Richard Dawkins extraída do Nullifidian (Dezembro 1994)
Religiosos dividem-se em três grupos principais quando confrontados com a ciência. Vou agrupá-los em os “sabe-nada”, os “sabe-tudo” e os “não-tem-nada-a-ver”. Suspeito que esse Dr. John Habgood, o Arcebispo de Nova Iorque, pertence provavelmente ao terceiro desses grupos, portanto começarei por ele.
Os “Não-tem-nada-a-ver” já se conformaram com o fato de que a religião não pode competir com a ciência em seu próprio terreno. Pensam que não há nenhuma disputa entre a ciência e a religião, porque simplesmente tratam de coisas diferentes. O relato bíblico da origem do universo (a origem da vida e do homem, a diversidade das espécies, etc.) – todas essas coisas, já se sabe, são inverdades.
Os “Não-tem-nada-a-ver” não se incomodam com isto: consideram esse relato extremamente ingênuo, sendo quase de mau gosto perguntar sobre uma história bíblica: “é verdadeira mesmo?”. Respondem: “Verdadeira, verdadeira? Claro que não. Pelo menos no sentido tosco e literal. A ciência e a religião não estão disputando o mesmo território. Tratam de coisas diferentes. São igualmente verdadeiras, mas cada uma a seu modo.”
Uma frase favorita e completamente sem sentido é “alçada religiosa”. Você depara-se com ela em declarações tais como “a ciência explica esse fato muito bem, mas esse outro é da alçada religiosa.”
Os “sabe-nada”, ou os fundamentalistas, de certa maneira são mais honestos. São fiéis à história. Reconhecem que até recentemente uma das principais funções das religiões era científica: a explicação da existência, do universo, da vida. Historicamente, a maioria das religiões sempre foi cosmológica e biológica. Suspeito que hoje, se você pedisse que alguém justificasse sua crença em Deus, a razão predominante seria científica. A maioria, penso eu, acredita que é necessário um Deus para explicar a existência do mundo, particularmente da vida. Estão errados, é claro, mas nosso sistema de instrução é tal que muitos não sabem.
São também fiéis à historia porque não se pode escapar das implicações científicas da religião. Um universo com um Deus seria completamente diferente de um sem. Uma física, uma biologia onde haja um Deus é obrigada a parecer diferente. Assim, as afirmações mais básicas da religião são científicas. A religião é uma teoria científica.
Sou acusado às vezes de intolerância arrogante em meu tratamento dos criacionistas. Naturalmente, a arrogância é uma característica desagradável, e eu deveria odiar ser visto como arrogante de uma maneira geral. Mas a paciência tem limites! Para se ter uma idéia de como é ser um estudante profissional de evolução, chamado a ter um debate sério com criacionistas, a seguinte comparação é justa: imagine-se como um erudito que passou toda sua vida estudando a historia romana em todo seu rico detalhe; de repente, alguém aparece, formado em engenharia marítima ou no estudo da música medieval, e se põe a argumentar que o Império Romano nunca existiu. Você não acharia duro suprimir sua impaciência? E isso não se pareceria um pouco com arrogância?
Meu terceiro grupo, os “sabe-tudo” (eu indelicadamente chamo-os assim por causa da sua posição condescendente), pensam que a religião é boa para as pessoas, e talvez até mesmo para a sociedade. Talvez boa porque os consola na morte ou aflição, talvez porque forneça um código moral.
Não importa se a crença religiosa é ou não verdadeira. Talvez não haja um Deus; nós, os instruídos, sabemos que não existe quase nenhuma evidência para tal, sem falar em idéias tais como a Virgem dar à luz ou a Ressurreição. Mas a massa sem educação precisa de um Deus para mantê-la fora do crime ou confortá-la na aflição. O fato de Deus provavelmente não existir pode ser deixado de lado no interesse de um bem social maior. Não preciso dizer mais nada sobre os “sabe-tudo”, porque nunca declarariam ter qualquer coisa para contribuir à verdade científica.
Deus é uma supercorda?
Retornarei agora aos “Não-tem-nada-a-ver”. Seu argumento é certamente digno de exame sério, mas penso que concluiremos que ele tem só um pouquinho mais de mérito que os de outros grupos.
Deus não é um velhinho de barba branca no céu. Bem, então, o que é Deus? Nesse momento começam as evasivas covardes. Que variam o tempo todo. “Deus não está no exterior, e sim no interior de todos nós”. “Deus é a base do ser”. “Deus é a essência da vida”. “Deus é o universo”. “Você não acredita no universo?” “É claro que acredito no universo” “Então você acredita em Deus”. “Deus é amor, você não acredita no amor?” “Certo, então você acredita em Deus?”
Os físicos modernos se expressam, às vezes, com um quê de misticismo quando entretêm perguntas tais como por que o Big-Bang aconteceu quando aconteceu, por que as leis da física são estas e não aquelas, até mesmo por que o universo existe, e assim por diante. Às vezes, os físicos podem lançar mão do discurso de que há um cerne oculto de mistério que não compreendemos, e talvez nunca entenderemos; e podem então dizer que talvez este cerne oculto de mistério seja um outro nome para Deus. Ou nas palavras de Stephen Hawking, se compreendermos estas coisas, talvez “conheceremos a mente de Deus”.
O problema é que esse Deus, da maneira sofisticada como os físicos usam esse termo, não se assemelha nem um pouco com o Deus da Bíblia ou de qualquer outra religião. Se um físico disser que Deus é um outro nome para a Constante de Planck, ou que Deus é uma supercorda, nós entenderíamos isso como uma maneira metafórica pitoresca de dizer que a natureza das supercordas ou do valor da constante de Planck é um mistério profundo. Não tem, obviamente, a menor conexão com um ser capaz de perdoar pecadores, escutar preces, que se importa se o Sábado começa às 5 ou 6 da tarde, se você usa véu ou se seu braço está aparecendo; e nenhuma ligação, qualquer que seja, com um ser capaz de impor uma pena de morte a Seu filho a fim de expiar os pecados do mundo antes e depois de nascer.
A fabulosa Bíblia
O mesmo se diz das tentativas de atribuir o Big-Bang da cosmologia moderna ao mito do Gênesis. Há somente uma semelhança totalmente trivial entre as concepções sofisticadas da física moderna e os mitos da criação dos babilônios e dos judeus que herdamos.
O que os “Não-tem-nada-a-ver” têm a dizer sobre as partes da escritura e dos ensinamentos religiosos que outrora seriam considerados verdades religiosas e científicas inquestionáveis; a criação do mundo, da vida, os vários milagres do Velho e Novo Testamento, sobrevivência após a morte, a Virgem dar à luz? Estas histórias tornaram-se, nas mãos dos “Não-tem-nada-a-ver”, pouco mais do que fábulas morais, equivalentes aos contos de Esopo de Hans Anderson. Não há nada de errado nisso, mas é irritante que quase nunca admitam que é isto que estão fazendo.
Por exemplo, ouvi recentemente o ex-Rabino Principal, Sir Immanuel Jacobovits, falando sobre os males do racismo. O racismo é nocivo e, portanto, merece um argumento contrário melhor que o que ele deu. Adão e Eva, argumentou ele, foram os antepassados de toda a raça humana. Conseqüentemente, toda a humanidade pertence a uma raça, a humana.
O que dizer de um argumento como esse? O Rabino Principal é um homem letrado, obviamente não acredita em Adão e Eva. Portanto, o que ele pensou exatamente que estava dizendo?
Ele deve ter usado Adão e Eva como uma fábula, da mesma forma que alguém pode usar a história de Jack o Matador de Gigantes [2] ou da Cinderela para ilustrar algum louvável exemplo de moralidade.
Tenho a impressão que os lideres religiosos estão tão habituados a tratar as histórias bíblicas como fábulas que se esqueceram da diferença entre fato e ficção. É como os que, quando alguém morre no The Archers [3], escrevem cartas de condolências umas às outras.
Herdando a religião [4]
Sendo darwinista, algumas vezes me surpreendo quando examino a religião. A religião apresenta um padrão de hereditariedade o qual penso ser similar à hereditariedade genética. A grande maioria das pessoas segue uma religião particular. Existem centenas de denominações religiosas diferentes, e cada fiel segue apenas uma delas.
Observamos uma estranha coincidência em todas as religiões do mundo: a maioria esmagadora, por uma incrível coincidência, escolhe justamente a de seus pais. Não a que apresenta a melhor evidência a seu favor, os melhores milagres, o melhor código moral, a melhor catedral, o melhor vitral, a melhor música: quando tem que escolher da lista enorme de religiões disponíveis, as virtudes potenciais das mesmas parecem não ter nenhuma importância, se comparada à questão da hereditariedade.
Este é um fato inconfundível; que ninguém poderia seriamente negar. Contudo, as pessoas com completo conhecimento da natureza arbitrária dessa hereditariedade, de algum modo manipulam suas mentes para continuar a acreditar em suas religiões, freqüentemente com tal fanatismo que estão preparadas a assassinar os que sigam uma diferente.
As verdades sobre o cosmos são válidas por todo o Universo. Não diferem no Paquistão, no Afeganistão, na Polônia ou na Noruega. Contudo, estamos aparentemente preparados para aceitar que a religião que adotamos é mais uma questão de geografia.
Se perguntarmos por que estão convencidas da verdade de sua religião, nunca apelariam para a hereditariedade. Quando é apresentada dessa maneira sua fé parece idiotice. Nem apelam à evidência. Não existe nenhuma, e hoje em dia os mais instruídos admitem isso. Não, eles apelam à fé. A fé é a melhor maneira de tirar o corpo fora, a grande desculpa para se evadir da necessidade de pensar e avaliar as evidências. Ter fé é acreditar apesar da, ou até mesmo por causa da, falta de evidência. O pior é que o resto de nós tem que respeitar isso: tratar isso com luvas de pelica.
Se um abatedor não acatar a lei concernente à crueldade com animais, ele é devidamente processado e punido. Mas se houver uma queixa de que suas práticas cruéis são exigências da sua religião, desculpamo-nos veementemente e permitimos que prossiga. Qualquer outra atitude que alguém tome deve-se esperar que seja defendida com algum argumento racional. Só a fé pode ser justificada sem nenhum argumento lógico. A fé deve ser respeitada; e quem não a respeitar é acusado de violação dos direitos humanos.
Mesmo aqueles sem nenhuma fé sofreram lavagem cerebral para respeitar a fé dos outros. Quando os assim chamados líderes muçulmanos da comunidade vão ao rádio e advogam a morte de Salman Rushdie [5], estão claramente incitando um assassinato – um crime pelo qual seriam normalmente processados e possivelmente encarcerados. Mas eles são presos? Não são, porque nossa sociedade secular “respeita” a sua fé, e simpatiza com a profunda “dor” e “insulto” a eles.
Nesse caso, não respeito de jeito nenhum. Respeito seus pontos de vista contanto que possa justificá-los. Mas se você justificar suas opiniões somente dizendo que tem fé nelas, eu não as respeitarei.
Improbabilidades
Quero terminar retornando à ciência. É freqüentemente dito, principalmente pelos “Não-tem-nada-a-ver”, que embora não haja nenhuma evidência positiva para a existência de Deus, não há evidência contra a sua existência. Assim, é melhor manter uma mente aberta e ser agnóstico.
À primeira vista, essa parece uma posição inexpugnável, ao menos no sentido fraco da Aposta de Pascal [6]. Mas pensando um pouco mais, se revela uma tirada de corpo, porque o mesmo poderia ser dito de Papai Noel e da Fadinha do Dente. Pode haver duendes nos pontos recônditos do jardim. Não há nenhuma evidência disso, mas você não pode provar que não há algum por lá. Portanto, não deveríamos ser agnósticos com relação aos duendes?
O problema com o argumento agnóstico é que pode ser aplicado a qualquer coisa. Há um número infinito de crenças hipotéticas que poderíamos ter, as quais não poderíamos positivamente refutar. De um modo geral, não acreditamos na maioria delas, tais como duendes, unicórnios, dragões, Papai Noel, e assim por diante. Mas de um modo geral, as pessoas acreditam em um Deus criador, junto com o que quer que esteja incluído na religião particular de seus pais.
Suspeito que a razão disso é que a maioria das pessoas, mesmo não pertencendo ao partido do “sabe-nada”, não obstante, tem um resíduo de sentimento que o darwinismo não seja abrangente o bastante para explicar tudo sobre a vida. Tudo que posso dizer na posição de biólogo é que o sentimento desaparece progressivamente, quanto mais se lê e estuda sobre o que se sabe sobre a vida e a evolução.
Mais uma coisa. Quanto mais se compreende a importância da evolução, mais se é empurrado da posição de agnóstico para a do ateísmo. Coisas complexas e estatisticamente improváveis são, por sua própria natureza, mais difíceis de explicar do que as simples e estatisticamente prováveis.
A grande beleza da teoria da evolução de Darwin é que explica como coisas complexas e difíceis de compreender poderiam ter emergido passo a passo, de um modo plausível, de origens simples e fáceis de compreender. Iniciamos nossa explicação de coisas quase infinitamente simples: hidrogênio puro e uma quantidade enorme de energia. Nossas explicações científicas, darwinistas, levam-nos através de uma série de etapas graduais e bem-compreendidas rumo a toda a beleza e complexidade espetacular da vida.
A hipótese alternativa, que tudo começou com um ato de criação sobrenatural, não é tão somente supérflua, mas também altamente improvável. Ela cai em contradição com o próprio argumento que foi usado para defendê-la. Isto porque todo Deus digno do nome deve ter sido um ser de inteligência colossal, uma supermente, uma entidade de probabilidade extremamente baixa – um ser muito improvável certamente.
Mesmo se a postulação de tal entidade nos explicasse qualquer coisa (e ela é totalmente desnecessária), isso ainda não nos ajudaria, pois cria um mistério ainda maior do que o que ela procura resolver.
A ciência oferece-nos uma explicação de como a complexidade (o difícil) emergiu da simplicidade (o fácil). A hipótese de Deus não oferece nenhuma explanação de qualquer coisa que valha a pena, porque postula simplesmente o que estamos tentando explicar. Postula o difícil de explicar, e deixa-o assim. Não podemos provar que Deus não existe, mas podemos com segurança concluir que Ele é muito, muito improvável, mesmo.
Notas do tradutor
[1] Nos EUA, é costume das crianças deixarem o dente em algum lugar, e uma moeda aparece em seu lugar. Claro que os pais trocaram o dente pela moeda, mas as crianças acreditam que foi uma fadinha que fez isso.
[2] Foi feito um filme sobre essa fábula e nas décadas de cinqüenta e sessenta, fez muito sucesso.
[3] Um seriado popular da TV norte-americana.
[4] Esse título em inglês faz alusão a um filme famoso sobre a teoria da evolução. O nome do filme é Inherit the Wind (VHS, 1999 e DVD, 1960). Esse filme retrata uma batalha jurídica entre criacionistas e evolucionistas, travada no Kansas, no começo do século XX.
[5] Autor dos Versos Satânicos, livro que critica a bíblia muçulmana: o Corão.
[6] Um ponto de vista filosófico afirmando que você não tem nada a perder com a fé, pois se Deus existir, você não perdeu nada ao acreditar nele.
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